Em vídeo nas redes sociais, médica promove aplicação de vitaminas na veia como fórmula para gestantes terem filhos mais inteligentes; prática pode causar infecções, reações alérgicas graves e até malformações fetais

Além da soroterapia, há profissionais de saúde que defendem o uso de suplementos vitamínicos orais durante a gestação como forma de "aumentar o QI dos bebês". | 📷 Chayanin Wongpracha/Adobe Stock
A promessa é tentadora: um bebê mais inteligente, com menor risco de autismo e um desenvolvimento neurológico acima da média. Difícil não prestar atenção — ainda mais quando ela circula em vídeos que viralizam nas redes sociais. Em um deles, uma médica grávida aparece recebendo vitaminas diretamente na veia. Ela chama o procedimento de “Protocolo Superbebê”: uma combinação de suplementos orais e intravenosos que, diz, foi desenvolvida por ela para ajudar gestantes a ter filhos mais inteligentes.
O procedimento pode até parecer inovador, mas o que o vídeo não conta é que a prática não tem qualquer comprovação científica. Pelo contrário: especialistas alertam que intervenções desse tipo podem representar riscos sérios para a gestante e o bebê.
A repercussão foi tamanha que levou entidades médicas como o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) a se manifestarem publicamente, alertando para os riscos do “charlatanismo”.
“Promessas infundadas, mesmo que com aparência de sofisticação, não substituem a boa medicina e podem expor as gestantes a perigos inaceitáveis”, declarou a Febrasgo em nota.
E esse não é um caso isolado. Além da soroterapia promovida no vídeo, não é difícil encontrar profissionais sugerindo a suplementação vitamínica como uma maneira de “turbinar” o desenvolvimento cognitivo dos bebês.
“A suplementação tem, sim, um papel importante durante a gestação, mas não por esse motivo”, esclarece Elias Ferreira De Melo Junior, presidente da Comissão Nacional Especializada em Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Febrasgo. Segundo ele, a recomendação deve seguir critérios bem definidos, levando em conta as necessidades específicas de cada fase da gravidez e o perfil individual da gestante. E, quando necessária, a suplementação deve ser feita preferencialmente por via oral.
No entanto, o que se observa em prescrições de profissionais que comercializam a suplementação como uma “fórmula mágica” para turbinar o QI do bebê está muito distante das diretrizes médicas: trata-se de um coquetel de vitaminas que mistura substâncias desnecessárias com outras potencialmente arriscadas.
“O que temos comprovado é simples, acessível e seguro. Inclusive, está disponível gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS). O resto é marketing travestido de ciência”, opina Melo Junior.
De acordo com material elaborado pela Febrasgo, estes são os únicos minerais e vitaminas considerados essenciais para gestantes:
Ácido fólico (ou metilfolato)
- Função: essencial para a multiplicação celular e formação da hemoglobina.
- Recomendações: 400 µg/dia, desde o período pré-gestacional até o fim do primeiro trimestre de gestação, e de 200 a 400 µg/dia até o fim da gestação.
- A deficiência de ácido fólico pode causar defeitos no tubo neural, anemia megaloblástica, aborto, prematuridade e pré-eclâmpsia.
- Função: importante para evitar anemia e promover o crescimento fetal saudável.
- Recomendações: 30 a 60 mg/dia do início da gestação até o terceiro mês após o parto.
- Indicação: suplementação recomendada apenas para gestantes com risco nutricional ou em uso de medicamentos que afetam o metabolismo do cálcio.
- Recomendações: a suplementação mínima de 600 UI por dia é indicada para todas as gestantes. No entanto, a dose ideal deve ser ajustada conforme exame laboratorial, para evitar deficiência ou excesso.
Recomendações: ingestão de três porções semanais de peixes ricos em ômega-3 ou suplementação manipulada.
Além dessas, há situações em que necessidades específicas podem justificar uma abordagem diferenciada. É o que ocorre com gestantes que têm restrições alimentares, como vegetarianas, veganas ou mulheres com alergias, intolerâncias ou crenças religiosas que limitam o consumo de certos alimentos. O mesmo vale para aquelas que passaram por cirurgia bariátrica, procedimento que pode comprometer a absorção de nutrientes e levar a deficiências que exigem acompanhamento individualizado.
Quais são os riscos?
Toda vez que se oferece ao organismo uma dose excessiva de vitaminas, há consequências. “Por exemplo, quando se administra ferro em excesso, a paciente pode apresentar fezes escurecidas, aumento dos gases intestinais e piora das náuseas, o que é especialmente desconfortável para gestantes que já sofrem com esses sintomas”, explica Melo Junior.
Algumas vitaminas, no entanto, apresentam efeitos colaterais mais graves. É o caso da vitamina A, cuja toxicidade está bem documentada e pode afetar tanto a mãe quanto o bebê. A vitamina D, por sua vez, só deve ser utilizada com base em exames, já que o excesso sobrecarrega os rins, dificultando a eliminação da substância e favorecendo a formação de cálculos renais.
Outro exemplo preocupante é o uso de iodo, uma das substâncias indicadas na “soroterapia” que viralizou. No Brasil, o consumo de iodo já é garantido por meio da adição do mineral ao sal de cozinha, conforme orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ou seja, nós já consumimos a quantidade recomendada naturalmente. Em excesso, porém, ele pode prejudicar a função da tireoide, tanto da mãe quanto do feto, e provocar hipotireoidismo ou hipertireoidismo, condições que afetam diretamente o metabolismo e o desenvolvimento neurológico.
Além da composição, a via de administração também faz diferença. Suplementos são indicados por via oral por uma razão. “Tudo que é administrado por via intravenosa oferece riscos adicionais. O acesso venoso é uma porta de entrada para infecções. Além disso, qualquer erro na dose vai direto para a corrente sanguínea, sem tempo para conter ou reverter os efeitos”, alerta o médico. Entre os possíveis efeitos adversos estão inflamação da parede do vaso (flebite), embolia pulmonar, infarto, reações alérgicas graves e até choque anafilático, com perda de consciência e risco de morte.
E o bebê também não está livre de riscos. Em nota, o Cremesp alertou para o perigo de malformações fetais, especialmente quando substâncias são administradas de modo indiscriminado durante o primeiro trimestre da gestação, período crítico para a formação do sistema nervoso central e de órgãos vitais.
O que pode influenciar no QI?
QI, ou quociente de inteligência, é uma pontuação obtida a partir de testes neuropsicológicos padronizados, aplicados em crianças a partir dos 2 anos e em adultos. Mas, segundo Magda Lahorgue Nunes, presidente do Departamento Científico de Neurologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), esses resultados só costumam ser mais confiáveis e estáveis por volta dos 6 anos de idade.
Esses testes são usados para identificar possíveis deficiências intelectuais ou até altas habilidades, e ajudam a traçar estratégias pedagógicas. A pontuação é classificada em faixas, como QI médio, abaixo ou acima da média, e o que se espera de um resultado varia de acordo com a idade. Ao contrário do que dizem por aí, porém, não existe nenhuma substância, cápsula ou suplemento capaz de aumentar o QI, seja por via oral ou pela corrente sanguínea.
Magda reforça que o desenvolvimento intelectual é resultado de uma combinação de fatores, como a genética, o ambiente em que a criança é criada e a ausência de lesões neurológicas.
“Uma criança com boa genética, mas que cresce sem interação, sem afeto, sem conversa e sem brincadeiras pode não desenvolver todo o seu potencial. Já uma criança com limitações pode avançar muito se estiver em um ambiente estimulante, cuidadoso e acolhedor.”
A fórmula do ‘charlatanismo’
Carlos Eduardo Viterbo, médico ortopedista e divulgador científico da medicina baseada em evidências, é categórico ao analisar o chamado “Protocolo Superbebê” e a “fórmula do charlatanismo“.
Para ele, não se trata de um fenômeno novo. O que chama atenção, nesse caso específico, é o cenário. “A culpa materna começa antes mesmo de o bebê nascer. Essa preocupação intensa em querer oferecer o melhor para a criança torna a gestante um alvo fácil para promessas milagrosas. Explorar essa vulnerabilidade para oferecer um tratamento sem respaldo científico, para mim, foi um choque”, diz Viterbo.
A palavra “protocolo” no nome do tratamento não é por acaso. Segundo o médico, trata-se de uma tentativa clara de emprestar autoridade e credibilidade a algo que, na prática, é apenas uma receita sem validação científica. Viterbo destaca que protocolos médicos legítimos são fruto de consenso entre especialistas, validados por instituições sérias, como o Ministério da Saúde e a OMS, e amplamente aceitos pela comunidade científica.
“Quando um único profissional inventa um ‘protocolo’ que só existe na sua clínica, sem passar pelo crivo da ciência e da medicina baseada em evidências, ele está, na verdade, conferindo uma falsa autoridade”, alerta.
Para Viterbo, o termo “superbebê” exemplifica como a alteração ou omissão de nomes serve para mascarar a ausência de evidências. Substituir termos associados a práticas com reputação negativa — como trocar “chip da beleza” por “implantes” ou “chip da saúde” — ou simplesmente ocultar o nome do procedimento, são estratégias comuns. No caso do “Protocolo Superbebê”, prevalece a omissão.
“A ‘soroterapia’ vem perdendo credibilidade por não ter base sólida. Para contornar isso, os defensores passaram a adotar termos como ‘nutrição intravenosa’. No caso do ‘superbebê’, nenhum desses nomes é citado, mas a essência é a mesma: administrar pela veia uma mistura de vitaminas, minerais e outras substâncias, o famoso ‘xixi caro‘”, explica.
Ao analisar os estudos apresentados pela médica responsável pelo protocolo como justificativa científica, Viterbo identificou um padrão: a maioria consiste em pesquisas observacionais, relatos de caso ou estudos com amostras muito pequenas e sem grupo controle, o que compromete a validade dos resultados. “Muitas vezes, as conclusões se baseiam em medidas subjetivas, sem indicadores clínicos sólidos.”
Um dos artigos citados, por exemplo, nem sequer envolvia gestantes. Era um estudo sobre suplementação de aminoácidos em recém-nascidos prematuros. Outro associava a deficiência de nutrientes como vitamina B12 ou iodo a desfechos negativos no desenvolvimento infantil, algo já previsto em diretrizes do próprio ministério e que, segundo o médico, não justifica a adoção de terapias intravenosas de forma isolada.
“Esses profissionais sabem que a ciência tem peso. Então, pegam qualquer estudo que aparece; às vezes, nem leem direito. Digitam o nome da substância no PubMed e pronto: citam o artigo como se fosse uma super evidência”, explica. O problema, segundo ele, é que o PubMed é só uma plataforma de busca. Lá dentro, há desde revisões sérias e estudos bem conduzidos até pesquisas malfeitas, relatos de caso e artigos com conclusões questionáveis.
Ele também critica o atual modelo de produção científica. “Publicar virou um negócio bilionário. As grandes editoras cobram para publicar, para acessar, para revisar. E o pesquisador é pressionado a publicar cada vez mais, porque isso aumenta suas chances de prestígio e avanço na carreira. O resultado é um inchaço de artigos de baixa qualidade, escritos às pressas, pouco revisados e que raramente têm aplicação prática”.
Segundo o médico, o volume de publicações cresceu tanto que hoje se estima que entre 90% e 95% dos estudos publicados não tenham utilidade clínica real.
“A saúde mexe com nossos medos: o medo de adoecer, o medo de que um filho tenha um problema crônico... E, quando juntamos vulnerabilidade com desinformação e interesses financeiros, abrimos espaço para muita pseudociência com cara de verdade”, diz Viterbo.
Fiscalização
A médica responsável por divulgar o chamado “Protocolo Superbebê” possui registro nos Conselhos Regionais de Medicina do Ceará e do Paraná. Procurado, o CRM do Paraná informou que está acompanhando o caso e tomando as providências cabíveis, entre elas, a fiscalização dos perfis profissionais que a médica mantém nas redes sociais.
“Caso sejam confirmados indícios de violação das normas éticas, o CRM-PR instaurará um processo de sindicância para apurar a conduta da profissional, seguindo os trâmites previstos no Código de Processo Ético-Profissional”, declarou o conselho em nota.
Já o CRM do Ceará não respondeu até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.
“Caso sejam confirmados indícios de violação das normas éticas, o CRM-PR instaurará um processo de sindicância para apurar a conduta da profissional, seguindo os trâmites previstos no Código de Processo Ético-Profissional”, declarou o conselho em nota.
Já o CRM do Ceará não respondeu até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.
Por Victória Ribeiro/Estadão