No Brasil, com pouca margem de manobra ante às fragilidades no Congresso e numa sociedade polarizada, Lula não pode falar o que pensa em questões que considera fundamentais
Em seu best-seller, “A era dos extremos”, o historiador marxista Eric Hobsbawn lamenta alguns aspectos da democracia. Entre eles a impossibilidade de um governante dizer sempre a verdade, sob a pena de provocar uma série de distúrbios em seu país. Outro questionamento era a necessidade, nos regimes democráticos, de o governante precisar incendiar a maioria da população, em um nível histérico, para que seus desejos se tornassem viáveis. Ele citava o chanceler Otto von Bismark, que unificou a Alemanha falando o que pensava, sem precisar de recorrer à essas artimanhas da democracia. Era a maneira antiga de se fazer política.
Tivemos um ex-presidente, Jair Bolsonaro, que ganhou fama por ser “autêntico”, como assim a ele se referem seus apoiadores. Nos arroubos de sinceridade falava em socar bocas de repórteres, afirmou que uma então colega parlamentar “não merecia ser estuprada”, defendeu medicamentos de capacidade nula ou controversa no combate a uma epidemia que matou centena de milhares, em uma lista infindável de litígios boquirrotos. Quando Bolsonaro abria a boca em seus arroubos, o país se conturbava, numa contraprova de que Hobsbawn, nesse ponto, talvez tivesse alguma razão. Era a nova política agindo como a velhíssima política de Bismarck.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem cometido deslizes verbais. | 📷 RICARDO STUCKERT/PR
O atual presidente Lula também tem seus momentos de falastrão. Tem sido mais boquirroto em questões internacionais. Provoca certa confusão ao opinar em temas como guerra em Gaza, ditadura venezuelana ou a invasão russa na Ucrânia. Quem o apoia diz que ele defende os que sofrem. Quem o critica lembra que suas posições tendem a ser débeis, e às vezes cúmplices, com relação aos autocratas.
Mas, no Brasil, com pouca margem de manobra ante às fragilidades no Congresso e numa sociedade polarizada, Lula não pode falar o que pensa em questões que considera fundamentais. E, talvez, nem agir como pensa. Daí certas ambiguidades ou omissões em seus discursos. Semana passada, por exemplo, soubemos o resultado do Produto Interno Bruto. Um crescimento de 2,9% em 2023. Apesar de ser 0,1 ponto percentual abaixo do último número de Bolsonaro e de ter havido uma estagnação no segundo semestre, foi um índice bastante comemorado, ao estilo ufanista de “o Brasil voltou”.
Mas houve um certo silêncio nas áreas lulistas com relação à divulgação de que o motor do crescimento do PIB foi um setor que parte do petismo e da esquerda têm certa oposição e, em alguns casos, repugnância mútua: o agronegócio. O campo avançou 15,1% no ano passado em números que os tecnocratas do milagre do crescimento do começo dos anos 70, em plena ditadura, teriam inveja. Se olharmos fora do agro, veremos que outro setor que avançou foi o extrativista. Lula já chamou parte dos representantes do agro de “fascistas”. Não conviria no atual momento repetir o que já externou.
Outro caso: no embate entre austeridade e contrair dívidas para estimular o crescimento, Lula, à despeito de ter nomeado Fernando Haddad para o ministério da Fazenda, parece ser mais simpático às políticas expansionistas. Por tática ou estratégia, precisou recuar. Mais uma vez não costuma falar o que pensa fora dos períodos de entusiasmo. No máximo, solta algo nas entrelinhas que o próprio Haddad precisa de desmentir.
Mais um episódio: num arroubo de sinceridade ao estilo bolsonarista (ou seria ao estilo lulista?), nosso presidente atual deixou escapar o que pensa sobre qual deve ser o papel das empresas privadas. Considera que é se submeter ao governo de plantão. A fala, sobre a Vale, causou certo rebuliço no setor, para um talvez júbilo de Hobsbawn (que faleceu em 2012).
Como um todo, o historiador inglês estaria equivocado porque, muitas vezes, um presidente da República é eleito para representar uma ampla frente de pensamentos que podem ser divergentes em alguns pontos. Lula, por exemplo, talvez não tivesse chegado lá se não tivesse reunido forças que se opunham a Bolsonaro e não que o apoiavam incondicionalmente (algo que a todo momento parece se esquecer).
No sentido de representar a muitos e não apenas a si mesmo ou a seu partido, um presidente democrata vive em uma espécie de prisão – e melhor que seja sim porque a alternativa é um regime autocrático ou ditatorial. Se pensarmos bem, é ótimo para o Brasil que seus líderes usem sua língua com certa sabedoria e parcimônia – algo que não ocorre há muito tempo.
Então, no seu dia a dia como governante, Lula precisa manter certa reserva sobre seus pensamentos a respeito de temas como aborto, segurança pública, relação com o Congresso, forças militares, meio-ambiente, certos indicados para seu próprio ministério, e uma série de assuntos com os quais precisa lidar no dia a dia. Seriam os ossos do ofício.
Logo, para saber o que Lula pensa, temos duas dicas. Uma delas é perceber os momentos em que ele se perde em algum arrebatamento egocêntrico. O outro, quem sabe, sejam nas postagens ao estilo política estudantil, quase sempre desafiadoras e provocativas, da presidente do seu partido, Gleisi Hoffmann. Talvez esteja quase tudo lá.
Por Fabiano Lana/Estadão